CAPÍTULO 11
LIVRO IMITAÇÃO DE MARIA
DO CUIDADO QUE NOS CABE TER POR
CONSERVAR A GRAÇA SANIFICANTE
Maria, concebida na graça
de Deus, sem mancha de pecado, sem inclinação para o pecado, não havia razão
para temer, como nós outros, alguma queda no pecado. Dir-se-ia, entretanto, ao
lhe examinarmos a vida que, tanto quanto nós, tinha ela do que temer, talvez
mais dó que nós. Ela velava sobre o coração constantemente, como se as
criaturas pudessem usurpar as feições suas. Ela velava sobre todas as palavras,
qual se desconfiasse de seus próprios lábios. Concebida com todos os
privilégios da inocência, quis viver sempre na penitência.
Quanto a nós, não
obstante os inimigos enganadores e mentirosos que nos cercam, que só procuram
aproveitar-se de nossa fraqueza natural, nada tememos, nada velamos.
Confessamos ser a própria fraqueza, mas nos expomos muitas vezes às ocasiões
que aos mais fortes fizeram sucumbir. Não é verdade que a fraqueza arrogante
merece perder a força que a sustém?
Conduzimos o tesouro da
graça em um fragílimo vaso (2Cor 4,7), o qual facilmente se quebra, e quando
menos o esperamos.
Quantos inimigos procuram
roubar-nos tal tesouro! Há dentro de nós, fora de nós e ao redor de nós! Dentro
de nós são as paixões não mortificadas; fora, os espíritos das trevas; em
derredor de nós, um mundo pervertido. São semelhantes as nossas paixões a chamas
mal extintas: podem reacender-se ainda e provocar incêndios.
Ainda que houvermos
"até o terceiro céu" ascendido, como São Paulo, temamos ser precipitados
com o Anjo rebelde à profundeza dos abismos.
É em vão que nos
capacitamos da sinceridade de nossos sentimentos, do fervor de nossas
resoluções. Basta uma ocasião infeliz para que nos percamos. Bastou um olhar
para arrancar a Davi a amizade de Deus. Uma Dalila bastou para vencer um
Sansão.
Viram-se as colunas dos
mais santos desertos deslocadas, após lutas, durante anos a fio, contra as mais
violentas tempestades.
Nos caminhos da virtude,
nunca um dia se iguala a outro dia, e, por falta de fidelidade, uma alma pode
ser objeto de execração depois de o haver sido de favores divinos. Quem quer
que conte demasiado nas resoluções passadas, ao ponto de não velar sobre si
mesmo, não demorará em cair no erro.
Análogo é este a quem se
arrojasse em tempestuoso mar cheio de escolhos sem as devidas e necessárias
precauções. Logo se arriscaria ao mais funesto naufrágio.
É duro, decerto, passar
alguém sua vida a velar incessantemente sobre as suas inclinações, a fim de as
combater; mas ninguém se fez santo sem vigilância e sem luta.
Meu Deus, penetrai de
vosso temor as minhas carnes (Sl 118,120). O temor servir-me-á por me fazer
vigilante; e minha vigilância, por que eu obtenha a ventura de sair vitorioso
de todos os combates.
Fazei que eu compreenda
perfeitamente que esta graça, a qual nos torna vossos amigos e filhos,
representa o único bem merecedor dos meus cuidados e cuja perda mereceria todos
os meus lamentos.
Feliz serei se jamais
perder este preciosíssimo tesouro! Dar-me-ei por pago de todas as tristezas
desta vida, ao mesmo tempo em que terei adquirido muitas riquezas para a outra.
Feliz, infinitamente
feliz se com fidelidade me conduzo, na resolução em que estou de suportar todo
o mal desta vida, antes que me expor a perder tal tesouro! Se a este souber
conservar, em minh 'alma, Senhor, residireis; possui-la-eis com a vossa
presença: iluminá-la-eis com a vossa Sabedoria. sustentá-la-eis com o vosso
Poder; sereis Vós, Senhor, sua própria recompensa no tempo e na eternidade.
ESCUTE ESTA RÁDIO!