Por Santa Teresa de Jesus
Trata por que Modos Começou o
Senhor a Despertar a sua Alma e dar-lhe Luz em Trevas Tão grandes e
Fortalecer-lhe as Virtudes para não Mais O Ofender.
Por Santa Teresa de Jesus - Doutora da Igreja
1. Andava minha alma já cansada e, embora o
quisesse, não deixavam sossegar os maus costumes que tinha. Aconteceu-me,
entrando um dia no oratório, vi uma imagem que ali haviam dado para certa festa
que se fazia na casa. Era de Cristo cheio de chagas, e tão devota que só de lhe
pôr nela os olhos fiquei turbada, pois bem representava o que passou Ele por
nós. Foi tal o que senti vendo quão mal lhe havia agradecido aquelas chagas, o
coração me parecia partir-se. Lancei-me a Seus pés derramando muitíssimas
lágrimas, suplicando-Lhe que me fortalecesse de uma vez para não mais O
ofender.
2. Era eu muito devota da gloriosa Madalena e
muitas vezes, especialmente quando comungava, pensava na sua conversão; como
sabia ao certo que tinha naquela hora o Senhor dentro de mim, arrojava-me aos
Seus pés parecendo-me que minhas lágrimas não seriam então dignas de desprezo.
E não sabia o que estava dizendo, demais já fazia Ele em consentir que por Sua
causa eu as derramasse, dado que tão depressa me esquecia daquele sentimento.
Recomendava-me àquela gloriosa Santa, rogando-lhe que me alcançasse perdão.
3. Parece, porém, que diante dessa imagem em que
falei colhi maior proveito porque já estava muito desconfiada de mim e punha a
confiança em Deus. Creio que Lhe disse então que não me haveria de levantar
dali até que Ele me fizesse o que eu lhe suplicava. Tenho a certeza de que me
valeu essa súplica, melhorando daí por diante. Usava eu o seguinte modo de
orar: como não podia discorrer com o entendimento, procurava representar a
Cristo dentro de mim e, a meu parecer, sentia-me melhor nos passos em que O via
mais só. Imaginava que, estando sozinho e aflito, como pessoa necessitada, me
haveria de acolher. Tinha eu muitas dessas simplicidades. Sentia-me
especialmente bem do Horto: cabia-me ali acompanhá-Lo. Pensava naquele suor,
naquela aflição que O atacara; desejaria, se fosse possível, aquele suor
penoso. Mas recordo que jamais me atrevia a fazê-lo, à lembrança dos meus
pecados tão graves. Ficava com Ele o mais que o permitiam os meus pensamentos -
pois inúmeros pensamentos me atormentavam.
4. Quase todas as noites antes de dormir, durante
anos, quando me encomendava a Deus, pensava sempre um pouco neste passo da
oração do Horto; fazia-o antes mesmo de ser monja porque me haviam dito que
assim se ganham numerosas indulgências. E tenho para mim que por tal modo
ganhou muito a minha alma: comecei a fazer oração sem o saber e o costume
antigo me impedia de a deixar, tal como não deixava de me benzer ao dormir.
5. Voltando ao que falava acerca do tormento que
causavam os pensamentos, digo que este modo de orar sem discurso do
entendimento significa ou que a alma anda muito rica, ou muito perdida -
perdida em distrações. Se está aproveitando, aproveita muito porque cresce no
amor. Mas muito lhe custará chegar a tal ponto, salvo a pessoas como algumas
que conheço, às quais o Senhor quer fazer com que em breve cheguem à oração de
quietude. Para estas é útil usarem de um livro, a fim de mais depressa se
recolherem. A mim também me dava proveito ver campo, ou agua ou flores. Nestas
coisas achava a lembrança do Criador; quero dizer que me despertavam, davam-me
recolhimento, serviam-me de livro e também me recordavam de minha ingratidão e
meus pecados. Coisas do Céu ou coisas elevadas jamais pude imaginar, tão
grosseiro era meu entendimento - até que o Senhor por outro modo, mas
representou.
6 . Tinha tão pouca habilidade para representar
coisas com o entendimento que, afora o que via, de nada me valia a imaginação,
como o fazem outras pessoas que sabem representar coisas estão recolhidas. Eu
só podia pensar em Cristo como homem e assim mesmo jamais O pude representar no
meu íntimo, por mais que lesse acerca da Sua formosura e olhasse as Suas
imagens; era como um cego ou como quem está na escuridão: embora fale com uma
pessoa e veja que está com ela, pois sabe ao certo que está ali, entende e crê
na sua presença, mas não a vê. Dessa maneira me acontecia a mim quando pensava
em Nosso Senhor. Por essa causa era eu tão amiga de imagens. Desventurados os
que por sua culpa perdem esse bem! Parece mesmo que não amam o Senhor, pois se
O amassem folgariam de ver o Seu retrato, tal como dá prazer contemplar a
figura de alguém a quem se quer bem.
7. Nesse tempo me deram as "Confissões de
Santo Agostinho"; parece-me que o Senhor o ordenou, porque eu não as
procurei nem nunca as havia visto. Sou muito afeiçoada a Santo Agostinho; à sua
ordem pertencia o mosteiro onde morei como secular. Amo-o também porque ele foi
pecador; sempre hauri consolo dos Santos que o Senhor tomava a Si depois de
pecadores, parecendo-me que neles haveria de encontrar a vida. E como o Senhor
lhes perdoara, também me poderia perdoar a mim; só uma coisa me desconsolava,
segundo já o disse: é que a eles só uma vez os chamara o Senhor e não tornaram
a cair; a mim chamara-me tantas vezes que já me aflgia. Contudo, considerando
no amor que Ele me tinha, tornava animar-me, que de Sua misericórdia jamais
desconfiei. De mim é que desconfiava muitas vezes.
8. Oh! valha-me Deus, como me espanta a dureza de
minha alma apesar de tantas ajudas de Deus! Faz-me temor ver o pouco que podia
comigo e quão atada me via sem me resolver a entregar-me toda ao Senhor. Lendo
as "Confissões" parecia-me ver-me a ali; comecei a encomendar-me
muito a este glorioso Santo. Quando cheguei à sua conversão e li como ouviu
aquela voz no Horto, pareceu-me que o Senhor mandava Sua voz a mim, segundo
sentiu meu coração. Muito tempo fiquei desfeita em lágrimas, presa de grande
aflição e tormento. Oh! quanto sofre uma alma (valha-me Deus) por perder a
liberdade de que deveria ser senhora e que tormentos padece! Agora me admiro
como podia viver num sofrer tão grande. Louvado seja Deus, que me deu vida para
sair de morte tão mortal.
9 . Parece-me que grandes forças recebeu minha alma
da Divina Majestade que devia ouvir meus clamores e sentir dó de tantas
lágrimas. Começou a crescer em mim o gosto de ficar mais tempo com Ele, e a
tirar dos olhos as ocasiões porque, tiradas elas, logo me volvia a amar Sua
Majestade; que bem entendia eu que O amava, mas não entendia o amar deveras,
como o deveria entender. Mal acabava eu de me dispor a querer servi-Lo, Sua
Majestade já me começava a deliciar. Parecia até que aquilo que os outros
procuram adquirir com grande lida, instava o Senhor comigo para que O
recebesse, pois nos últimos anos já me dava prazeres e deIícias. Nem as
ternuras de devoção, nem a suplicar que me desse jamais me atrevi; só Lhe pedia
que me desse graça para que não O ofendesse e me perdoasse meus grandes
pecados. Vendo-os tão grandes, jamais ousaria deliberadamente desejar prazeres.
De sobejo fazia a Sua piedade, e verdadeiramente era usar comigo de grande
misericórdia, consentir em trazer-me à Sua presença, pois eu bem via que, se
Ele não me procurara, eu não O procuraria. Só uma vez na minha vida recordo de
Lhe ter pedido um prazer, sofrendo de grande sede; e apercebendo-me do que
fazia, fiquei tão confusa que a simples aflição de me ver tão pouco humilde,
deu-me o que eu me atrevera a pedir. Bem sabia eu que era lícitopedi-lo, mas
parecia-me a mim que só o era para os que se preparam, procurando com todas as
forças a verdadeira devoção que consiste em não ofender a Deus e estar pronto e
determinado para todo o bem. Parecia-me que minhas lágrimas eram pranto de
mulher, pranto sem força, já que com ele não alcançava o que desejava. E
contudo creio que me valeram; porque, como disse, especialmente depois dessas
duas vezes de grande compunção, de lágrimas e dor no meu peito, comecei a orar
melhor e a tratar menos em coisas que me condenavam. Ainda assim não as deixava
de todo, mas, fui me ajudando de Deus para desviar-me. E como Sua Majestade não
esperava senão uma correspondência de minha parte, foram crescendo as mercês
espirituais da maneira que adiante direi. Coisa desusada, pois não as costuma
dar o Senhor senão àqueles que tem consciência mais limpa.
Fonte: Teresa de Jesus, Santa e Doutora
da Igreja. Vida De Santa Teresa Escrita por ela Mesma - Tradução: Raquel de
Queiróz. São Paulo: Edições Loyola: 1984.