Superexaltat autem misericordia iudicium – “A misericórdia se eleva sobre o juízo” (Tg 2, 13)
Sumário. Toda a terra está cheia da misericórdia de Deus, que nos ama tanto e tão grande desejo tem de nos dispensar suas graças, que nós não o temos igual de as receber. Basta dizer que foi a misericórdia que levou o Senhor a enviar à terra o seu próprio Filho mesmo para se fazer homem, levar uma vida de trabalhos e fadigas e afinal morrer sobre uma cruz por nosso amor. Mas, ai daquele que deixa passar o tempo da divina misericórdia! De repente lhe virá o da justiça, e da justiça tanto mais inexorável, quanto maior tiver sido a misericórdia.
I. É tão grande o desejo de Deus de nos dispensar suas graças, que, no dizer de Santo Agostinho, Ele mais deseja no-las comunicar do que nós as desejamos receber. A razão é que, como explicam os filósofos, a bondade é por natureza levada a dilatar-se em benefício dos outros. Por isso, Deus, que é a bondade infinita, tem um desejo infinito de se comunicar a nós suas criaturas e fazer-nos participantes de seus bens.
Dali nasce a grande misericórdia do Senhor para com as criaturas. Davi diz que a terra está cheia da divina misericórdia. Não está cheia da divina justiça, porque Deus não exerce sua justiça para castigar os pecadores, senão quando se vê obrigado ou quase constrangido a exercê-la. Ao contrário, é generoso e liberal no uso da sua misericórdia para com todos e em todo tempo, pelo que São Tiago escreve: Superexaltat autem misericordia iudicium – “A misericórdia se eleva sobre o juízo”. Muitas vezes a misericórdia arranca das mãos da justiça os açoites aparelhados para os pecadores e obtém para eles o perdão.
Eis porque o profeta no salmo 58 dá a Deus o nome de misericórdia (1), e no 24 suplica queira perdoa-lhe pelo seu nome, por ser Ele a própria misericórdia (2). No salmo 135, no qual exorta todos a louvarem a Deus por causa da sua providência e dos benefícios conferidos a seu povo, repete vinte e sete vezes estas palavras: In aeternum misericordia eius — “A sua misericórdia é para sempre”. – Em suma, foi a sua grande misericórdia que moveu Deus a enviar a terra seu próprio Filho, para se fazer homem e morrer sobre uma cruz, afim de nos livrar da morte eterna. Por isso Zacarias cantou: Per viscera misericordiae Dei nostri (3) – “Pelas entranhas da misericórdia de nosso Deus” (Lc 1,78). Por “entranhas de misericórdia” entende-se uma misericórdia que procede do íntimo do Coração de Deus; porquanto preferiu ver morrer seu Filho feito homem, a ver-nos perdidos.
II. Para compreendermos quão grande é a misericórdia de Deus para conosco e o desejo que Ele tem de nos fazer bem, basta a leitura destas poucas palavras suas no Evangelho: Petite et dabitur vobis (4) – “Pedi e vos será dado”. Que mais poderia dizer um amigo ao outro, para lhe provar a sua afeição? Pede-me o que quiseres e eu te darei. Ora, é isso o que Deus diz a cada um de nós; e além disso convida-nos a recorrermos a Ele para achar alívio em nossas misérias: Venite ad me omnes, qui laboratis et onerati estis, et ego reficiam vos (5).
Vendo algum pecador obstinado no pecado, Deus espera pacientemente, para usar de misericórdia com ele. Entretanto emprega todos os meios para reconduzi-lo à penitência; ora pondo-lhe diante dos olhos o castigo que lhe está reservado, se não se converte (6); ora batendo à porta do coração, a fim de que se lhe abra (7); ora gritando atrás dele: Quare moriemini, domus Israel? (8) – “Porque morrereis, ó casa de Israel?” Como se a compaixão lhe fizesse dizer: Meu filho, porque te queres assim perder? Volta, lança-te em meus braços, sou ainda sempre teu Pai. – Não contente com isso, o Senhor vai ainda mais longe, e, como escreve o Apóstolo, chega a suplicar aos pecadores que se reconciliem com Deus: Obsecramus pro Christo, reconciliamini Deo (9).
Se porém, apesar de tamanha bondade e misericórdia, alguém se obstinar no pecado, que fará o Senhor? Protesta que sempre está disposto a usar de misericórdia com ele, enquanto não o vir comparecer perante o seu tribunal divino; e ali, depois de lhe ter lançado em rosto a má correspondência à graça, condena-lo-á ao inferno, com as palavras: Perditio tua, Israel: tantummodo in me auxilium tuum (10) – “A tua perdição, ó Israel, toda vem de ti; só em mim está o teu auxílio”.
Ó Eterno Pai, em nome de Jesus Cristo e por amor de Maria Santíssima, livrai-me de tamanha desgraça e fazei com que me aproveite bem da vossa misericórdia. Se viesse a me perder, que inferno seria para mim a lembrança da misericórdia que tivestes comigo e o pensar que me quis perder em vosso despeito?
Referências:
(1) Sl 58, 18
(2) Sl 24, 11
(3) Lc 1, 78
(4) Mt 7, 7
(5) Mt 11, 28
(6) Sl 59, 6
(7) Ap 3, 20
(8) Ez 18, 31
(9) 2 Cor 5, 20
(10) Os 13, 9
(2) Sl 24, 11
(3) Lc 1, 78
(4) Mt 7, 7
(5) Mt 11, 28
(6) Sl 59, 6
(7) Ap 3, 20
(8) Ez 18, 31
(9) 2 Cor 5, 20
(10) Os 13, 9
(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo II: Desde o Domingo da Páscoa até a Undécima Semana depois de Pentecostes inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 219-222)